30 de março de 2013

Um vazio cheio de tudo

O grande desafio do Brasil é se descobrir fora da caixa política e cultural, na qual foi acomodado enquanto país colonizado e periférico. As janelas para dentro e para fora, construídas pelos sistemas de comunicação e educação, como orientadores do que deve e do que não deve ser apreciado na paisagem social brasileira e internacional, não atendem aos anseios contemporâneos de autorreconhecimento e de participação ativa no diálogo global.

Esse desencontro entre perspectiva e expectativa requer a abertura de novas fendas capazes de arejar e iluminar o nosso legítimo espaço no mundo concreto e simbólico, real e virtual. E não há como fazer isso sem tratar as questões culturais como substâncias orgânicas de educação e comunicação, fundamentadas no domínio do saber, da sabedoria e do sentimento e não apenas do método, do conhecimento e da razão.

A hora é do exercício do contraditório, do confronto de ideias livres e de enriquecimento coexistencial. Os pensamentos opostos são parte do vigor cultural e, quando observados no tempo dos processos, tornam-se bens de grande valor social, escapando do mero enquadramento no estatuto do certo e do errado. O que vale no debate é a sinceridade dos pontos de vista. Confiar no olhar do outro significa respeitá-lo e não necessariamente aceitá-lo. As colocações de uns influenciam as colocações de outros, fazendo com que todos escapem da racionalidade do isolamento, passando a entender coisas que somente são possíveis por resultarem do fluxo das ideias.

Com a chamada de capa “O vazio da cultura – ou a imbecilização do Brasil”, a revista Carta Capital (Ed. Confiança, São Paulo, 06/02/2013) ofereceu a debate alguns textos sobre a situação da arte e da literatura no contexto de crescimento do mercado consumidor brasileiro na última década. O editorial de Mino Carta é provocante e faz bem em sê-lo. Choca ao dizer que os notáveis intérpretes da cultura brasileira estão na terceira idade e que há muito o país não produz grandes escritores, artistas, historiadores e repórteres. Talvez o verbo “revelar” no lugar de “produzir” fosse mais adequado, mas, pelo jeito, a intenção foi mesmo de escandalizar.

A pauta, voltada para a afirmação de que os progressos econômicos e sociais costumam coincidir com avanços culturais é muito boa. Até porque estamos vivendo no Brasil uma situação que ora parece confirmar e ora parece negar essa regra. Neste aspectos, as abordagens feitas na revista sofrem dessa ambiguidade. Ora o editor refere-se a programas como o “Big Brother Brasil”, lutas de MMA e do UFC, quase como se esperasse refino estético na cultura de massa, e ora reconhece que o novo consumidor não adquire automaticamente a consciência de cidadania, que pode livrá-lo dos apelos da vulgaridade e da ignorância.

A associação entre desempenho econômico e cultural pode ser feita, sim, no Brasil de hoje, porém com os mesmos pesos e as mesmas medidas. Ou seja: se o crescimento da economia brasileira está ancorado nas mercadorias de grandes volumes, do tipo grãos e minérios, não dá para esperar visibilidade de expressões culturais que não as da cultura de massa e das festas corporativas. Um exemplo facilmente identificável dessa commoditização cultural está no nosso futebol, que deixou de ser uma paixão de arte e alegria para ser uma racionalidade exportadora de atletas.

No campo da música não é diferente, com a priorização das marcas de bandas e domarketing da fama, em detrimento da valorização dos artistas e das composições. O negócio da festa tomou o lugar do espetáculo. É certo que os músicos e cantores de baile sempre contaram com estruturas permanentes de locomoção e de apresentação, enquanto as formações de valor artístico sempre tiveram dificuldades de apoio. O que mudou, e nesse aspecto concordo com Mino Carta, é que os artistas e as bandas de entretenimento passaram a ser também as referências artísticas na indústria cultural.

Acontece que a produção cultural do país não se resume ao que normalmente aparece nas mídias tradicionais e digitais, o que pode provocar a sensação de vazio em quem vive preso a padrões territoriais e a circuitos de afinidades eletivas. É normal essa dificuldade dos sudestinos de compreenderem a diversificação do que se produz no restante do Brasil. O desconforto do que seria um vazio cultural está atrelado a essa condição de estranhamento causada pela vertigem dos extremos, já que o que chega para essas pessoas é a falação do vaivém homogeneizante.

No artigo “O belo não está à venda”, a jornalista Rosane Pavan é incisiva ao dizer que “a submissão ao mercado impede que a arte relevante apareça”. Recorre a velhas profecias modernistas, que denunciavam uma certa maldição de um lugar fadado ao “deleite extrativista”, a não se acostumar a “criar localmente, a ter voz própria e instituições fortes”. Restaria aos brasileiros uma esperança risonha e irônica, com alguns picos de brilho artístico forjado em circunstâncias adversas. Ainda que impotente diante dos fatos, ela alivia: “Não é o caso, aqui, de lamentar a decadência de uma cultura se ela ainda não conheceu seu verdadeiro apogeu” (p. 40 a 42).

O filósofo Vladimir Safatle questiona o senso preponderante de que o julgamento no campo da cultura resuma-se a um modo de impor gostos. Ele toca em um ponto categórico, que é a necessidade de uma política cultural que vá além das justificativas de “fortalecimento da economia criativa ou o uso da cultura como instrumento de integração social de classes desfavorecidas”. Em “Relativa prosperidade, absoluta indigência”(p. 46 e 47), ele reforça o senso de que o atual ciclo econômico não estimula a cultura brasileira, ao contrário do que ocorreu em outros momentos da república. Safatle defende que “uma verdadeira política cultural deveria insistir na autonomia da cultura, ou seja, na sua realidade como fim em si mesmo, e não como meio para alcançar outra coisa”.

Daniela Castro, que é formada em História da Arte e Estudo da Cultura Visual, resume a questão no artigo “Um excelente negócio” (p. 48 e 49), ao dizer que a arte tem perdido o caráter de bem público, comprometendo “as dimensões de fruição e de possibilidade de um real posicionamento crítico perante o mundo”. Isso é o que provavelmente explica o questionamento de Rosane Pavan com relação ao que levaria alguém a querer se inspirar e transpirar na produção de uma obra de referência, se o que seduz as pessoas atualmente são as “falsas moedas das narrativas de lenda pessoal”.

A matéria de capa da Carta Capital arrepiou o antropólogo Hermano Vianna. Em sua coluna no Segundo Caderno do jornal O Globo, ele revela que ficou se sentindo alienígena. “Vivo em um planeta diferente daquele habitado por quem não enxerga nada potente em nosso país. Meu problema é oposto (…) Estou sempre em dívida com uma lista enorme de pautas que não perdem a atualidade. São trabalhos culturais brilhantes, que podem despertar vocações artísticas em muito mais gente se forem conhecidos melhor” (“Era melhor antes”, 15/02/2013). Vianna não nega a existência das obras geniais, mas prefere o “junto e misturado” do mundo pós-internet: “No lugar do regime de escassez que produz gênios, temos um regime de criatividade distribuída em rede”.

Entre o que chama de visão saudosista e de entusiasmo da panaceia da tecnologia digital e da cultura genuína de rua, a jornalista e produtora cultural Thaís Aragão aponta para uma terceira direção, por onde possamos construir critérios que nos facilitem enxergar o que é ser um grande autor, um grande artista no nosso tempo. E adianta: “Grandes públicos não conferem valor artístico a ninguém. Movimentos sociais não transferem legitimidade artística. Tecnologia não é critério de validação artística” (Facebook, 04/02/2013). Gosto dessa fenda aberta pela Thaís porque, por ela, o que parece vazio pode ser visto como cheio de tudo.

Por Flávio Paiva.

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