8 de novembro de 2008

Para Antunes Filho, "Macunaíma" marcou o fim de seu trabalho com peças comerciais; leia trecho

Antunes Filho é um diretor que forma atores. Raul Cortez, Paulo Autran, Eva Wilma são alguns dos nomes que já passaram por suas mãos. Participou do movimento que renovou a cena teatral brasileira, nos anos 60 e 70. No final da década de 70, encenou Macunaíma, espetáculo histórico que mudou seu caminho no teatro e marcou o momento em que abandonou os trabalhos que chama de "comerciais".
Divulgação

"Conhecimentos das Artes" traz entrevista com Antunes Filho
Antunes explicou o processo de produção de Macunaíma em entrevista concedida a Nelson de Sá e Marcelo Rubens Paiva para o caderno Mais!, da Folha de S.Paulo, publicada em 6 de fevereiro de 2000. A sabatina está no livro "Conhecimento das Artes", da Publifolha, que reúne também entrevistas com personalidades do cinema, da literatura, da fotografia, da música e das artes plásticas. Leia o trecho da entrevista abaixo.
O diretor também aborda sua trajetória, filosofia de trabalho e seu método particular de formação de atores, que ele aplica no CPT, o Centro de Pesquisas Teatrais, e que resulta em espetáculos como Prêt-à-Porter, já em sua nona edição.
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ANTUNES FILHO por Nelson de Sá e Marcelo Rubens Paiva

FOLHA: A sua obra deu um grande salto com Macunaíma. O que iniciou o projeto?ANTUNES

FILHO: Olhei para o espelho em determinado momento, fazendo teatro comercial, e falei: "Não, eu tenho que ir mais fundo". Foi aí que começou. Larguei tudo. Foi um corte bruto.

FOLHA: Mas depois veio um período longo de preparação.

ANTUNES: Um ano, um ano e dois meses. Começou em 77, estreou em 78.

FOLHA: O que fez você se interessar por um texto que não era original de teatro? O que havia em Mário de Andrade?

ANTUNES: Eu fazia um teatro comercial, um teatro show business, e de vez em quando fazia umas incursões em outro tipo de teatro, como foi a Vereda da Salvação [1964], como foi Peer Gynt [1971].

FOLHA: Yerma [1962].

ANTUNES: Yerma. De vez em quando, eu entrava por um caminho, que foi sempre o caminho do meu coração, em que eu queria dizer uma coisa a mais. Vejo muito paralelo, aliás, entre Peer Gynt e Macunaíma. Se não tivesse feito Peer Gynt, talvez não tivesse chegado ao Macunaíma. Aquela aventura, que vai de uma coisa para outra. Eu fazia corretamente um teatro comercial, mas não estava contente. Isso desde moleque. Quando tinha 17 anos, eu tinha uma revista literária com os amigos e já escrevia uns contos surrealistas. Sempre tive outro lance. Duas coisas foram fundamentais. Desde menino, minha mãe me levava para ver teatro. Mas teatro assim mais comercial - Beatriz Costa, Vicente Celestino. Uma vez a cada três meses, ela me levava, aos domingos, ao antigo Cassino Antarctica [São Paulo]. Depois, a gente achou uma permanente do circo e ia todo domingo ver os dramas. Isso, eu era menino. Já no colégio, a gente fez a revista literária. E depois conheci todo esse pessoal do Museu de Arte Moderna, da Cinemateca, onde fiz um curso com o [cineasta Alberto] Cavalcanti, o [diretor e crítico de teatro] Ruggero Jacobbi, esse pessoal todinho, ali na ladeira da Memória. Então, eu fazia um teatro comercial que era legal e tudo, mas...

FOLHA: Você ganhava muito dinheiro naquela época?

ANTUNES: O teatro nunca foi profissão, nunca deu dinheiro. É que nem futebol. A gente fazia por amor mesmo. E era comercial, mas eu dava um jeitinho de ter outra aura lá dentro. Os meus espetáculos ditos comerciais sempre tinham uma coisa a mais. Não ficavam numa eficiência tola. Havia já uma espiritualidade pingando, uma goteira. Quando fiz o Macunaíma, era uma atitude que eu tomava, de não fazer mais aquele tipo de teatro. No Macunaíma, eu falei assim: "Não consigo olhar para mim, eu não me gosto". Era muito triste fazer aquele tipo de teatro. Fazia sucesso, até, mas não era a minha. E com essa influência toda...No Museu de Arte Moderna, eu convivia com [pintores como] Volpi, o Marcelo Grassmann - até hoje sou amigo.

FOLHA: Maria Bonomi.

ANTUNES: Maria Bonomi eu até casei, não é? [Ri.] Foi por aí que eu a conheci. Mas eu era amigo de todos. A gente ficava sempre no bar lá do museu, o Delmiro Gonçalves, o Paulo Emilio Salles Gomes, o Lourival Gomes Machado.

FOLHA: Como foi o curso de cinema?

ANTUNES:Foi lá que eu vi pela primeira vez a Joana d'Arc [filme mudo, de 1928] do [diretor dinamarquês Carl] Dreyer. Fiquei maluco. Eu falei:"Não agüento. O que se pode fazer?" Eu chorava, não acreditava naquele tipo de imagem. E trabalhava já o locucão, como é que chama?

FOLHA: Artaud.

ANTUNES: Artaud trabalhava no filme. Foi uma época legal. Eu freqüentava todas as companhias estrangeiras que vinham a São Paulo. Passava muita companhia de balé, teatro. E tinha um cara no Teatro Municipal, que até hoje está lá, que deixava a gente entrar. Nunca gastei um tostão para entrar em teatro. Eram todos os balés, o teatro, a companhia do [ator, encenador e cineasta Jean] Cocteau [1889-1963], todos os espetáculos do [ Jean- Louis] Barrault [1910-94], o "Batiste".

FOLHA: Há uma presença mui to grande do cinema na sua carreira. Você fez um filme [o longa-metragem Compasso de Espera, 1969-73]. Até o seu teatro você iniciou como imagem, teleteatro.

ANTUNES: Um dos primeiros filmes do [Ingmar] Bergman, eu nem sabia que era dele, eu fui ver, era Törst [Sede de Paixões, 1949]. Fiquei louco com o filme. E esse filme eu só fui saber muitos anos depois que era do Bergman. Eu adoro cinema.

FOLHA: Macunaíma tinha um...

ANTUNES: Arranque.

FOLHA: Um arranque. Você rompeu com todos os atores tradicionais. Era um grupo de gente desconhecida. Você já estava plantando o seu método?

ANTUNES: Não. Mas, para poder realizar certas coisas de maneira não-convencional, eu precisava começar um tipo de exercício. Não era: "Vamos fazer um método". Era: "Como é que se vai conseguir tirar o ator almofadinha?" Precisei ir fundo, para poder funcionar. Já na Vereda, em 64, o legal foi que o [dramaturgo] Jorge Andrade, um grande amigo que tive, topou a parada de fazer a coisa daquele jeito. Ele até estimulava. Quando estreou, foi um escândalo. Naquele tempo, tinha escândalo. E isso foi antes das coisas de 68, das coisas da Europa. Era uma coisa intuitiva, que eu tenho, de que faço e não sei por quê. De pois de alguns anos: "Ah, foi por isso". Nunca sei por que faço as coisas.

FOLHA: Qual é a herança de Macunaíma, hoje? Tem o trabalho plástico, inovador, que era usar material...

ANTUNES: Pobre. Sem ser teatro pobre, pelo amor de Deus!

FOLHA: Tinha um método novo, que você está dizendo que não sabia o que era.

ANTUNES: Método que já tinha começado na Vereda, de colocar em situação o ator, para ver o que pintava. Improvisar milhares de horas.

FOLHA: E tinha a coisa literária, de ser um romance.

ANTUNES:E uma obra literária que ninguém entendia. Todo mundo falava, no colégio, mas era só citação. O que acho legal, no Macunaíma, é que consegui decodificar para o público, sem fazer concessão. Procurei fazer com que se entendesse a obra. Isso eu achei legal, esse serviço que fiz, de facilitar a leitura. Tornar popular, sem vulgarizar a obra. Não quero banalizar a obra. Nunca. O meu trabalho é esse, mesmo quando corto o Nelson Rodrigues.

FOLHA: Quem adaptou o texto de Macunaíma?

ANTUNES: Tudo começou com cenas improvisadas. "Dou um capítulo para você, um capítulo para você, pega uns caras aí, umas mulheres, improvisa a cena, improvisa, improvisa"

FOLHA: Foram atores com quem você fez teste?

ANTUNES: É. Isa Kopelman...

FOLHA: Cacá Carvalho?

ANTUNES: O Cacá também.

FOLHA: Mas você fez teste?

ANTUNES: Fiz muito teste. O Cacá entrou no palco, fez 30 segundos, eu falei: " Olha, você é o Macunaíma, pode sentar". Era para ele voltar no dia seguinte lá para a terra dele, e, quando recebeu esse convite, ele ficou. Eu queria que o Stenio [Garcia] fizesse, ele tinha feito Peer Gynt, mas na época já estava com uns negócios, televisão.

FOLHA: Esse grupo ficou com você durante um ano?

ANTUNES: É, ficamos brincando lá no Teatro São Pedro [São Paulo]. A turma não tinha dinheiro, se virava de tudo que é jeito. A gente ocupou o espaço. Queriam tirar da gente o Teatro São Pedro, e a gente falou: "A gente não sai, o teatro é nosso agora". Queriam colocar shows. "Ah, chega de shows, o teatro é nosso." Aí, eles entenderam e deixaram a gente ficar. E estreamos.

FOLHA: E a construção do texto?

ANTUNES: "Você vai fazendo, improvisa dentro daquilo que está escrito." Aí, alguém escrevia. A gente avançou assim, cena por cena. Quando juntou mais ou menos tudo, dava seis horas de espetáculo. Aí, a gente chamou o homem que estava vertendo para o francês, Jacques Thiériot. "Fica ali na mesinha escrevendo", outro ficava fazendo a cena, e foi assim. Foi assim que foi criado, na base da improvisação o tempo todo. E depois eu precisava armar também as cenas, para dar o fluxo. Eu dava, aí ele pegava e colocava dentro das especificações solicitadas pelo sr. Mário de Andrade.

FOLHA: Por que você se interessou por Macunaíma?

ANTUNES: A idéia do Macunaíma sabe quem deu? Foi o próprio Jacques Thiériot, na mesa do Gigetto [restaurante em São Paulo]. Foi aí que eu fui pegar. Peguei e li.

FOLHA: E o que você viu em Macunaíma? Já viu alguma relação com Peer Gynt?

ANTUNES: Não, nenhuma. O Peer Gynt...Eu gosto muito do Ibsen, me encanta. É um dos autores de que mais gosto. Até fiz na televisão. Adoro as personagens. São visionárias, são proféticas, tudo maluco. O Macunaíma me encanta, também, se não o senso de...O Mário de Andrade, ele se inspirou no Oswald de Andrade. Tanto é que tem passagens da vida do Oswald que ele coloca em Macunaíma.

FOLHA: Você acha que o próprio Macunaíma tem algo de Oswald de Andrade?

ANTUNES: Não posso falar "Tenho certeza", por que aí vem o pessoal lá da USP criticar, mas tem coisas da vida do Oswald que ele tenta colocar. Sabe aquelas coisas meio levianas do Oswald de Andrade? Ele coloca tudo no Macunaíma. Que não é o mau-caráter. É o sem-caráter, que não tem memória. Ele vai em frente. Ele está indo para cá, vê um negócio lá e muda. É bem o brasileiro, irresponsável [ri]. Sem querer, através do Macunaíma, cheguei a coisas, através da indiaiada brasileira, dos mitos brasileiros, de Nelson Rodrigues depois. Isso tudo foi me levando para os arquétipos, para um tipo de literatura de análise das religiões, Mircea Eliade. Depois, veio Jung.

FOLHA: Macunaíma foi uma peça de pesquisa?

ANTUNES: Muita pesquisa, muito vídeo, tudo que é livro, milhões de fotografias. Índios também: quando vinham para São Paulo, a gente trazia para o ensaio. Os irmãos [Claudio e Orlando] Villas- Boas [sertanistas] também foram de muita ajuda para a gente. Foi um trabalho duro de pesquisa.

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