Tenho de me conformar - e parece que os senhores também - com os ditames da vida: mistério, cavalheiros, mistério…", instiga o senhor Silveirinha, personagem central do espetáculo Lamartine Babo. Ao lado de homens e mulheres usando roupas de um outro tempo, Silveirinha é invenção do consagrado diretor teatral Antunes Filho. Prestes a completar 80 anos, ele vive uma experiência de novato, estreando como dramaturgo no texto em homenagem ao compositor carioca, famoso nos anos 30 e 40 por suas marchinhas de carnaval e pelos hinos de clubes de futebol.
A frase de Silveirinha me remete a alguns outros mistérios, como o da própria arte que Antunes ensina nas salas do sétimo andar do Sesc Consolação, em São Paulo, sede do Centro de Pesquisa Teatral (CPT) - e onde Lamartine Babo, um musical dramático, ficará em cartaz até 24 de fevereiro de 2010. Como integrante do Círculo de Dramaturgia do CPT desde 2003, não tenho como não achar estranha ("mistério, cavalheiros, mistério...") essa nova condição de Antunes. Por que só agora, do topo de seus 60 anos de carreira, esse homem irrequieto de braços longos resolve mostrar um texto seu? Por isso ("não quero me conformar, senhores"), pergunto a ele. "Infelizmente, não sou escritor. Me dediquei ao teatro", desconversa enquanto mistura seu café solúvel descafeinado.
Por incrível que pareça, sua resposta faz sentido para quem o ouve versar sobre dramaturgia. Antunes gosta de enigmas, é sua forma de nos estimular para além das fórmulas dos manuais de roteiro. Mas há um consenso: um bom personagem deve ter contradições. Mais ou menos como na vida, como acontece com cada um de nós - com ele, inclusive. Assim é compreensível que, mesmo que não se considere do ofício, Antunes volta e meia se ache debruçado sobre uma mesa, com caneta e folhas de papel almaço (não é amigo dos computadores). "Escrevo vez por outra, quando me dá a louca. São textos rápidos: 'flap'. Armo uma peça pensando na situação, como em Lamartine Babo."
Eis a situação: numa espécie de beco abandonado, uma banda ensaia músicas de Lamartine. Obcecados pelo compositor, um visitante misterioso de terno preto e sua sobrinha angelical vão alterar por uma noite a rotina do grupo. "Lembro do dia em que ele teve a ideia. Estávamos ensaiando Senhora dos Afogadosquando Antunes me chamou em sua sala. Estava empolgado e ria de si mesmo ao narrar exatamente esta estrutura que temos hoje, inclusive as falas", conta Marcos de Andrade, ator que interpreta o tal Silveirinha, o visitante misterioso.
O episódio aconteceu há pouco mais de dois anos. Algum tempo depois, o texto chegou ao Círculo de Dramaturgia, digitado por um de seus assistentes, Rodrigo Audi, também integrante do Círculo. Em 13 folhas, a peça se dividia em oito intervalos previstos para as músicas. Na última página, assinava apenas "A.F., 12/03/07". Enfim, A.F. queria ouvir nossos comentários. "Avisou: 'Nada de proteção especial'", recorda Rodrigo. O que então dizer para Antunes Filho, quase 80 anos, uma coleção de prêmios e prestígio internacional? Simplesmente a verdade, já que estávamos diante de um texto de teatralidade extraordinária. Mesmo assim... Bem... Hanhan, um pigarro insistia em incomodar. Parecia de uma grande responsabilidade proferir qualquer palavra. "Ao mesmo tempo, ele se colocou aberto. Senti que estava seguro de como desejava contar aquela história", diz Michelle Ferreira, também do Círculo.
EMPREGADINHA A SERVIÇO DA ARTE
Dramaturgo siciliano famoso por Seis Personagens à Procura de um Autor, Luigi Pirandello (1867-1936) escreveu que a fantasia era uma empregadinha ágil a serviço de sua arte. Além da leveza da fantasia, o texto de Lamartine Babo aposta em um jogo teatral dinâmico e no humor, outras características de Pirandello. "Me inspirei na verdade dele", diz Antunes.
Agora, outro mistério para quem - de Eurípides a Nelson Rodrigues - se acostumou com as tragédias encenadas pelo CPT: primeiro musical concebido ali, Lamartine Babo é uma festa feliz e contagiante, cujo clima faz lembrar bailes de carnaval antigos (confetes imaginários caem sobre nossas cabeças). Será que o Antunes dramaturgo é assim tão diferente do diretor? "Ora, Macunaíma era alegre. Eu sou de Sagitário, solar. Mesmo a tragédia, você não pode fazer de mau humor: tem de ter muita alegria para não ficar ruim", diz. Aliás, por que Lamartine? Talvez Silveirinha possa responder pelo diretor: "Ele me faz cócegas por dentro", confessa o personagem, enquanto alisa seu chapéu preto. "Tenho adoração por ele. Mas não poderia fazer só um musical show, pois aqui há um compromisso com a pesquisa", explica Antunes.
Encomendado há três anos a um grupo interno de atores, o espetáculo não saiu como ele queria. Foi quando o próprio Antunes resolveu escrever. A direção do texto passou por dois outros grupos até chegar a Emerson Danesi, no CPT há 13 anos. "Antunes me disse: 'Se vira'. Tínhamos medo de não acertar. Mas, quando mostramos a primeira versão, ele pediu apenas para deixar o final menos melancólico", conta Emerson. Fora isso, ele jura que A.F. lhe deu total autonomia.
Os nove meses de ensaio contaram com a coordenação musical de Fernanda Maia. Selecionados em testes, os 11 atores tocam instrumentos como piano, violão, trompete e percussão e cantam 13 canções de Lamartine, entre elas Aeiou ("A, e, i, o, u, dabliú, dabliú, na cartilha da Juju") e Marchinha do Grande Galo("Cocorococó, cocorococó, o galo tem saudade da galinha carijó"). "Ponderamos muito para escolher as composições. O resto foi mais simples: precisamos apenas ouvir o texto, preciso em sua linha dramática", acrescenta Emerson.
Tal precisão não soa tão inédita, já que o "novato" Antunes vem de longa estrada. Talvez seja melhor falar de alguém que está sempre começando. Agora, como dramaturgo. "Gosto do brinquedo novo, do desafio de fazê-lo funcionar", diz ele. No Círculo de Dramaturgia, Antunes costuma dizer que escrever é contar um pouco de si mesmo, o que não deixa de ser como um pacto de coragem. No seu caso, não apenas para mostrar um lado dominical, mas ainda para se colocar novamente à prova. "No texto de Lamartine, é possível perceber que ele lança mão de um instrumental acumulado", avalia Michelle Ferreira. É um jogo que dominou, segundo ele, depois de varrer muito palco. "Foi assim que comecei: varrendo e servindo café para a Cacilda Becker e o Ziembinski", conta. "Aprendi sobre dramaturgia quando precisei adaptar uma obra por semana para os teleteatros ao vivo da TV Tupi, nos anos 1950. Aquilo me deu um sentido de causa e efeito, fui obrigado a sacar a linha de força de uma peça."
Depois, vieram adaptações de grandes livros, como o próprio Macunaíma (1978), de Mário de Andrade, espetáculo que o consagrou, e, mais recentemente, A Pedra do Reino (2006), de Ariano Suassuna. "Esse foi uma tourada. E o engraçado é que ninguém considera, é como se eu tivesse a obrigação", reclama. Isso sem falar em peças como Nova Velha Estória (1991), cujas palavras inventadas criavam um dialeto aberto à imaginação do espectador. Tudo isso é dramaturgia, ofício que ele tenta decifrar nas reuniões de sexta no Círculo. Às vezes, usa um cinzeiro redondo que há na sala e copinhos descartáveis como personagens de uma encenação ilustrativa sobre conflito, linhas de força, causa e efeito. Quando gosta do que ele mesmo falou, pede: "Isso foi bom. Anota aí".
Isso foi bom, A.F. Anota aí.Silvia Gomez é jornalista e dramaturga, editora da revista Casa Claudia e integrante do Círculo de Dramaturgia do Centro de Pesquisa Teatral. É autora de O Céu Cinco Minutos antes da Tempestade.
A PEÇA Lamartine Babo. De Antunes Filho. Direção de Emerson Danesi. Com Marcos de Andrade, Sady Medeiros, Domingas Person, entre outros. Espaço CPT — Sesc Consolação (rua Dr. Vila Nova, 245, São Paulo, SP, tel. 0++/11/3234-3000). 5ª, às 21h. Até 24/2/2010. R$ 10.
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