6 de janeiro de 2010

“E o palhaço, o que é?”

Logo a resposta quem vem à mente: é o “ladrão de mulher”, bordão clássico criado pelo palhaço Arrelia. Mas, palhaçadas à parte, o depoimento dos profissionais que atuam na área e mesmo o público que confere as apresentações resume a questão em uma resposta mais simples: o riso. Ou, sendo mais completo, como em uma boa piada: o riso com uma boa carga de críticas sociais.
“É aquele que recebeu uma luz, que eu diria ser a auto-aceitação e o auto compreender. É aquele que ganha quando perde tudo”, define Khalid Prestes, palhaço de Florianópolis (SC) que trabalha há sete anos na arte. Para ele, o palhaço só entende a si mesmo quando se humilha e se dá mal. Quando cai, quebra o nariz, faz uma piada com a própria cara, é o momento que todo mundo ri. “A grande sacada do palhaço é, por exemplo, enquanto o engenheiro, o médico ou o administrador de empresas tentam se descobrir sendo melhores, o palhaço tem que se entregar totalmente aos seus defeitos e ressaltar o pior. Só então ele vai receber a graça de Deus e vai ser engraçado”, filosofa Prestes.
Para Hique Veiga, de Curitiba (PR), o palhaço representa, durante uma apresentação, aquilo que ele sente naquele momento. “A sua atuação é o sentimento que está tendo no momento presente. Tem muito da energia da criança e em cena brinca como tal”. Já Benhur Pereira, o palhaço Bem, do Circo Petit Poa, de Porto Alegre (RS), vai mais a fundo. “O palhaço é um anjo. Acredito nos anjos vivos, como aquele amigo que coloca a mão no seu ombro e já está fazendo companhia. O palhaço é o próprio anjo, que deu a sua vida a disposição do riso. É um perdedor que ganha sempre com o riso. O bom profissional acaba sendo o velho, pois o cara que envelheceu tem uma sua caixa de emoções mais ampliada. Por isso, quero me envolver até o fim da minha vida”. Bem acredita que para ser um bom palhaço é preciso primeiramente falar a verdade. “O palhaço que mente em cena perde toda graça”, enfatiza. Os palhaços Wilson (Vander Boock) e Sarrafo (Felipe Termes), da Cia dos Palhaços, de Curitiba (PR), complementam. “A verdade é ele mesmo, em uma exposição máxima. É aquele que assume o que é mostrando sempre a verdade”.
Vanesa Rivero, a palhaça Flipa, natural da Espanha, estufa o peito e diz que “o palhaço é a melhor coisa do mundo. Sempre gostei de fazer as pessoas rirem. Isso sempre foi muito natural, principalmente, nas festas que participava. Trabalho como palhaça há seis anos. No começo, fazia apresentações não profissionais, nas ruas, para conseguir moedas, época em que era mais jovem e mais punk”, brinca. Na avaliação de Flipa, o circo na América do Sul, especialmente no Brasil, é muito mais forte e social do que na Europa. “Na Europa, os palhaços podem trabalhar de forma profissional, com técnicas, mas não têm o mesmo espírito de união que existe no Brasil. É maravilhoso ver a movimentação dos palhaços aqui, na qual a arte é usada, por exemplo, para tirar jovens da criminalidade, da violência e levar alegria tanto para os adultos quanto para crianças. Na Europa não chega nas crianças”.


Florianópolis e palhaços entregam-se aos Anjos do Picadeiro no. 8

Encontro internacional de palhaços atraiu artistas estrangeiros e nacionais

Entre os dias 23 e 30 de novembro, Florianópolis foi, principalmente para aqueles que puderam acompanhar, visivelmente uma cidade mais feliz e a capital internacional da gargalhada. A graça foi devido à realização da 8ª edição do festival Anjos do Picadeiro, o mais importante evento do gênero do País, que trouxe para a ilha da magia palhaços e estudiosos provenientes das ruas, circos, universidades de várias partes do Brasil e do mundo. Com entrada gratuita e ingressos a preços populares, foram oferecidos espetáculos em cinco espaços da cidade, entre teatros, a Lona Anjos do Picadeiro e o Circo Tomara Que Não Chova, montados ao ar livre especialmente para o encontro.
Além disso, houve oficinas e debates com objetivo de proporcionar a troca de experiências entre os artistas brasileiros e estrangeiros da Argentina, do Chile, dos Estados Unidos, da Espanha, da França e da Suíça. Já os convidados nacionais vieram de diversos Estados: Alagoas, Paraná, São Paulo, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e, também, do Distrito Federal. No total, 41 atrações integraram o evento.
O encontro internacional de palhaços foi aberto oficialmente, em grande estilo, com a “Palhaceata”, em que os artistas saíram pelas ruas da cidade vestindo as roupas típicas e os narizes vermelhos e conseguiram tirar boas risadas das pessoas que passavam pelo centro de Florianópolis. Foi no Largo da Alfândega a parada final, onde uma boa parte da população parou para repetir, em coro o que o palhaço locutor dizia. “Pedimos a todos os governantes que deixem as praças livres para que os artistas possam brincar com o coração duro das pessoas numa bela atmosfera de paz, dignidade e justiça para todos”. Ele ainda afirmou que se no Brasil o circo está desaparecendo, na Europa está sumindo muito mais. A palhaça Flipa, natural da Espanha, estava junto com sua cachorrinha Anne no evento e comemorou. “É maravilhoso este encontro, estou muito feliz aqui, pois nunca estive em um evento internacional tão grande e com tantos palhaços.”
Foi nesse clima, com o tema “Espiral de Influências”, que a oitava edição do encontro instalou-se estrategicamente em Florianópolis, plataforma de base para conexões com as cidades de Santa Catarina. Realizado desde 1996, o Anjos do Picadeiro chegou, pela primeira vez, ao Sul do País, sendo que já foi sediado no Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador e São José do Rio Preto.
Para o palhaço Bem, de Porto Alegre (RS), o Anjos do Picadeiro veio para clarear os conceitos e motivos da importância do Palhaço. “Esse encontro é para aproximar o palhaço da sociedade e demonstrar a importância que tem como elemento de transformação do ambiente que vivemos. Passei quatro anos sonhando estar encenando no Anjos e esse ano estou aqui.” Segundo Flávia Berton, produtora do Teatro de Anônimo e organizadora do evento, a estimativa é de que 15 mil pessoas participaram das atrações durante a semana em Florianópolis.
O encontro foi realizado pela primeira vez em em 1996, pelo Teatro de Anônimo, no Rio de Janeiro, como uma iniciativa independente, para comemorar seus dez anos de atividades. A ideia é a criação de uma rede de intercâmbio e troca entre os sujeitos protagonistas do fazer circense, independentemente de escola ou tradição, transformando-se, ao longo de 13 anos, em um espaço de troca, reciclagem e qualificação profissional.
Seguindo a trilha do fortalecimento das redes, a edição de 2009 é uma parceria com a Cia. Pé de Vento Teatro. A co-realização é do Sesc Santa Catarina, o apoio da Funarte e o patrocínio da Petrobras. Na semana que antecedeu a abertura oficial, o Sesc realizou o projeto Palhaçaria: rede de difusão da arte do clown, um circuito que apresentou espetáculos da programação por 15 cidades do interior de Santa Catarina.

Espetáculos
Entre os destaques internacionais, o norte-americano Avner Eisenberg apresentou o show “Exceptions to Gravity”, um espetáculo que mistura mímica e teatro físico. A americana Julie Goell fez uma versão de “Carmen”, de Bizet, combinando teatro físico com uma voz de mezzo soprano. Já a suíça Gardi Hutter, apresentou “O Ponto”. A Argentina possuiu quatro atrações: o palhaço de rua Chacovachi, com a performance “Palhaço Terceiromundista”; a malabarista clown e artista de rua Maku Jarrak, com o show “Rinbombam”; a dupla Naná e Tomate, com o espetáculo cômico “Casicapresse”; e o grupo Cancionero Rojo, que contou, de maneira cômica, a história universal da criação do mundo.

Papo de palhaço

Por Liliane Ribeiro,redação Florianópolis

Esteve presente no Anjos do Picadeiro a historiadora Ermínia Silva, filha de Barry Charles Silva e Edwirges P. Silva, quarta geração circense no Brasil. Em entrevista ao Jornal de Teatro, Ermínia analisa o papel do palhaço dentro da classe artística, além de explicar a situação atual do circo no Brasil e no mundo. Sua profissão possibilitou aprofundar pesquisas sobre histórias do circo, no mestrado com a dissertação “O Circo: sua arte e seus saberes”, em 1996, e, sete anos depois, com a tese de doutorado “Circo-teatro: Benjamim de Oliveira e a teatralidade circense no Brasil”.

Jornal de Teatro – Existe palhaço de circo e palhaço de teatro?
Ermínia Silva – Existe. O palhaço de circo tem que ter, no conjunto de saberes dele, técnicas para trabalhar na lona, pois ele não pode desenvolver a mesma técnica do teatro italiano. A lona é um espaço vazado: de som, de iluminação... O público vai com uma proposta de comportamento diferenciado. Quando o palhaço está em um teatro tipo italiano, tem que ter o mesmo conjunto, mas tem que saber trabalhar naquele lugar e para aquele público. Na rua é outra pegada. O palhaço de rua tem que te pegar agora, senão você já foi. No teatro ele pode construir um contexto aos poucos. No circo, a pegada já é outra, não é tão rápida como na rua, porque o público está sentado para assistir, mas não é tão densa como no teatro.

JT – Existe uma polêmica em relação à nomenclatura desses artistas. Afinal, o certo é palhaço ou clown?
ES – Na realidade, há 30, 40 anos, ocorreu uma produção de circo para fora da lona. Foi quando começou a ter as escolas de circo e também produção autônoma de atores e artistas que decidiram se dedicar à arte circense. Muitos deles começaram a frequentar escolas de circo na Europa – as escolas do Brasil não eram consolidadas ainda. Lá, os artistas que se formavam começaram a dar cursos de palhaços. Como se trata de um país onde a língua inglesa predomina, é usada a palavra clown ao invés de palhaço. Os pupilos desses palhaços acabavam falando que não eram palhaços de lona e, sim, de teatro.

JT – Mas eles se julgam superiores?
ES – Havia, na universidade, uma orientação de que eles seriam o Novo Circo, como se nós fossemos o antigo e eles não tivessem nada a ver com o circo de lona. Como se fosse uma produção de chocadeira, sem herança, sem história... Porém, ao mesmo tempo, eles acabam se vinculando a uma história europeia novamente, por causa da relação que mantinham com esses formadores na Europa, que têm uma herança muito grande do circo. Então, esses “pupilos” ficam se referendando mais aos palhaços europeus, que são chamados de clown (porque é língua inglesa) para se diferenciar dos nossos palhaços. Eles dizem: “eles são palhaços de lona e nós somos clown, de teatro”. Hoje em dia nós temos um debate muito tenso e intenso sobre isso.

JT – Você acha que existe, atualmente, um reconhecimento maior do palhaço na classe artística?
ES – Acredito que dentro de um grupo de pessoas ele começa a ter uma faixa de penetrabilidade diferente de outros. A figura do palhaço sempre foi fundamental. Nos circos do Norte e do Nordeste do Brasil, por exemplo, se o palhaço não for bom não se estabelece. Ninguém vai ao circo para ver acrobacia. O público vai ver o palhaço. Por outro lado, existe toda uma formação contemporânea nisso, desses montes de grupos para fora da lona e da questão das escolas e dos projetos sociais, o que resultou em uma diminuição significativa da lona no mundo. Não tem terrenos, os terrenos são caros... Tem cidades que não deixam entrar. Há períodos de 30, 40 anos sem circo na cidade, e, quando tem, é muito pouco e na periferia. Com a produção das escolas e dos projetos sociais, você começa a ver a formação circense entrar na cidade de uma forma diferente da que o circo fazia antes. Antes o circo chegava e ia embora. Agora, não. Os artistas estão ficando nas cidades depois de formados. Por isso que se ouve falar que o circo virou moda, porque em todos os lugares existe alguém que traz alguma prática circense. Hoje o circo tem uma penetrabilidade muito maior do que na época do meu pai, por exemplo.

DEBATE: E o palhaço o que é?

Dois grandes nomes da palhaçada brasileira aceitaram o desafio do Jornal de Teatro de participar de um debate imaginário sobre o mundo clown. Nossos convidados são Mario Bolognesi – pesquisador especialista e
professor do Instituto de Artes, da Unesp de São Paulo; e Carlos Simioni – um dos fundadores do Lume
(Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais), na Unicamp, onde trabalha como ator-pesquisador.

Jornal de Teatro – O que é preciso para ser um bom palhaço?
Mario Bolognesi – Antes de mais nada, um palhaço deve ter uma definição física e psicológica bem definida, fazendo convergir as qualidades pessoais com as do tipo arquetípico. Essa definição deve aparecer em sua roupa, maquiagem, gestos, andares, falas, em suma, na interpretação e na caracterização. Um bom palhaço sempre procura adequar suas características ao espaço e ao público. Além disso, ele deve ter um repertório amplo o suficiente para enfrentar os desafios da platéia: ele deve ter prontidão para o improviso.
Carlos Simioni – O palhaço precisa primeiramente ter generosidade, ser verdadeiro, e não querer fazer rir. Ele é palhaço no sentido somente quando coloca para fora o que é mais secreto. O ser humano normalmente não gosta de mostrar as suas fraquezas para a sociedade. Já o palhaço é o que mais gosta , pois não tem medo de tornar visível a sua ingenuidade e estupidez. Por conta disso, ele está aberto a perceber o que os outros não percebem. Ele retrata e pode dizer o quanto a humanidade é imbecil.

JT – Por que os palhaços são tão bem vindos na maioria dos lugares em que atuam?
Mario Bolognesi – Na atualidade, o palhaço é a manifestação do arquétipo do trickster, que já teve a forma do bobo da corte, do bufão, das personagens da commedia dell’arte etc. Ele não precisa dizer quem é e o que veio fazer. Ele chega e imediatamente instala-se o ambiente do cômico.
Carlos Simioni – O palhaço sempre é bem vindo nos ambientes, pois, além do público ver as palhaçadas, o artista mostra em cena tudo aquilo que é um ser humano sem defesa. Mostra o retrato do que é o ser humano, e que a sociedade não tem coragem de mostrar.

JT – Quais foram os primeiros palhaços da humanidade? Pode se dizer que os bobos da corte já tinham essa função?
Mario Bolognesi – O arquétipo cômico sempre esteve presente em todas as culturas e civilizações conhecidas, sob diversos nomes: sátiros, bobos, bufões, palhaços, clown etc. Todas as culturas indígenas conhecidas têm uma figura cômica entre seus membros. Mas há uma nítida diferença entre a função do cômico em uma situação espetacular e a mesma função dada no âmbito do cotidiano social. Bobos da corte, por exemplo, não eram personagens que se instauravam no exato momento do espetáculo. Eles o eram socialmente.
Carlos Simioni – Na idade média tinha, no intervalo de apresentações, uma pessoa que fazia graça e divertia o público. Depois surgiram novos grandes palhaços do século XX, como Grok, Charles Rivel e a família Colombaione, que começaram a fazer espetáculos solos. Na segunda metade do século, começaram a aparecer os palhaços professores, que ensinavam outros palhaços. No Brasil, o Lume teve uma grande importância na história dos palhaços. Foi o grupo que introduziu o clown no Brasil, em 1989. Luis Otávio Burnier, um dos criadores do grupo, estudou 11 anos na França, começou a dar aulas no Lume e, alguns anos depois, a arte se espalhou pelo Brasil.

JT – O crescimento dos espetáculos teatrais pode ser reflexo da queda dos circos? Como avalia o espaço para a atuação dos palhaços hoje em dia?
Mario Bolognesi – Não me consta que esteja havendo uma “queda dos circos”. O que está ocorrendo é a transformação da atividade circense, como, aliás, em toda a história. O circo sempre se transformou. Os palhaços foram presença marcante no Teatro das Feiras parisienses, nos teatros da “periferia” londrina e em tantos outros espetáculos teatrais de forte apelo popular. A linhagem do teatro erudito é que não deu tanto espaço a ele. No entanto, a partir das vanguardas do início do século XX, esse personagem (e o circo em geral) passou a ser experimentada a ponto de se consolidar. O palhaço e o circo foram um dos tantos suportes para a consolidação de uma cena não realista, não psicológica.
Carlos Simioni – Com o passar dos anos, o número de circos foi diminuindo e, consequentemente, os espetáculos dos palhaços de lona também. Desde então, houve uma transformação da arte, com a explosão de palhaços no teatro. Isso ajudou muito o ator de teatro, pois, ao trabalhar como palhaço, conseguiu tirar suas defesas, mostrar os sentimentos mais puros e fraquezas. De 1989 para cá, houve uma avalanche de atores novos que começaram trabalhar nesse modo de fazer palhaços. Eles descobriram, também, que dava bastante embasamento para o ator. A partir dessa época, os atores começaram a se livrar um pouco de textos prontos e peças escritas para, através deles mesmos, começarem a criar coisas novas em cima do clown.

JT – Quais as diferenças entre os palhaços de ontem e de hoje? A estrutura da apresentação dos espetáculos com palhaços mudou com o tempo?
Mario Bolognesi – Os palhaços sempre se transformaram. Os primeiros clowns a pisarem em um picadeiro circense, no final do século XVIII até meados do XIX, não guardam muita proximidade com os atuais. Os atuais se inspiram em um tipo específico de palhaço, o chamado Augusto, cuja característica principal e marcante é o nariz vermelho exagerado, que só veio a se firmar em torno de 1860. Mesmo assim, desde então, o tipo sofreu muitas transformações na maquiagem, na vestimenta, nos gestos, nas falas etc. Ao “retornar” aos palcos teatrais, por exemplo, ele teve necessidade de diminuir a intensidade gestual, assim como a maquiagem e a indumentária.
Carlos Simioni – Na Europa, os espetáculos de palhaços eram considerados nobres, assim como a figura do palhaço, que até hoje tem o máximo do respeito. Com o passar dos anos, os palhaços perderam e ganharam respeito. Mudaram muito os espetáculos. Antigamente, era número pronto. Hoje existe muito mais interatividade com o público. Como o mundo é hoje mais liberal, houve uma transformação na estrutura dos espetáculos

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