12 de outubro de 2009

O Despertar da Primavera - A Revolução dos Contrários

Responsáveis pela profissionalização dos musicais no Brasil, Claudio Botelho e Charles Möeller aliam arte e entretenimento, público e crítica, na montagem de "O Despertar da Primavera"

O organizado Claudio Botelho (à esq.) e o detalhista Charles Möeller.Diferentes, os dois se completaram na obsessão pela qualidade Foto: Gilvan Barreto (       0)
Gilvan Barreto
O organizado Claudio Botelho (à esq.) e o detalhista Charles Möeller.Diferentes, os dois se completaram na obsessão pela qualidade

Na criação artística, o autor solitário tradicionalmente reina soberano: diretor de cinema, coreógrafo, dramaturgo. São os nomes deles que estão à frente das obras, mesmo quando elas nascem do trabalho de muitos. Em oposição, há a chamada "criação coletiva", moda em algumas áreas. Entretanto, essa lógica por vezes cede lugar a um terceiro tipo: a dupla de artistas que, apoiada em suas diferenças, cria uma fórmula de sucesso. Foi assim, por exemplo, na combinação entre a audácia de John Lennon e o método de Paul McCartney, líderes da revolução musical dos Beatles; na colaboração entre dois escritores argentinos, o comedido Jorge Luis Borges e o vaidoso Adolfo Bioy Casares, autores de várias obras em parceria; e na fusão do exibicionismo excêntrico de George Gershwin com a timidez do irmão Ira, criadores de vários clássicos da canção americana. Férteis cada um à sua maneira, os opostos não apenas se atraem como também procriam.


No teatro brasileiro, os produtores Claudio Botelho e Charles Möeller seguem esse padrão. Em entrevistas, Botelho mantém um pensamento linear e organizado, enquanto Möeller oferece detalhes bem-humorados. Juntos há 13 anos, desde As Malvadas (1996), os dois criaram uma grife sem concorrência nos musicais no Brasil, elevando o gênero a um nível internacional e revolucionando o mercado dos profissionais do teatro.


O Despertar da Primavera, em cartaz no Rio de Janeiro, é o 22º espetáculo com a assinatura dos dois. É também representativo das duas virtudes da dupla: a criatividade e a competência técnica. Ambas foram exaltadas pela mais exigente analista brasileira de teatro, Barbara Heliodora. No meio teatral do Rio de Janeiro, circula a máxima de que, a cada ano, a crítica do jornal O Globo escolhe apenas um espetáculo para elogiar. Se a piada tem um fundo de verdade, o eleito deste ano é o musical de Botelho e Möeller. "Se O Despertar da Primavera é a maioridade do musical americano, a montagem carioca é a prova da maturidade do nosso teatro, pois o espetáculo é tão bom quanto emocionante", escreveu.


Trazer ao Brasil a versão musical da peça escrita em 1891 pelo alemão Frank Wedekind menos de três anos depois de sua estreia na Broadway já seria trabalhoso, mas havia também o fato de que esta seria a primeira non-replica da montagem. Isto é: usando o mesmo texto e canções do original, a dupla rea lizou direção e concepção diferentes em tudo das criadas por Duncan Sheik e Steven Sater. A montagem americana usa as canções como uma performance de rock - em alguns momentos, a cena para e os atores seguram microfones de mão ou de pedestal, de frente para a plateia. Na versão brasileira, os personagens se movimentam sempre pelo palco, mantendo a ação como se estivessem numa ópera. Essa criatividade, que sempre acrescenta ideias ao original, é uma das marcas registradas da dupla.

MODERNIZAÇÃO
A outra é o apuro técnico. O cuidado com a produção chama a atenção em O Despertar da Primavera. Botelho e Möeller são obcecados pela qualidade desde que começaram a trabalhar juntos. "Diziam que tínhamos enlouquecido, que no Brasil o musical não daria certo", lembra Möeller. Razões até que não faltavam. No início, o amadorismo em iluminação e cenário - que precisam de tratamento específico no gênero - acabava em resultados desastrosos. "Assistíamos a espetáculos com cenário balançando, parecia um carro alegórico. Em um musical, a parte técnica tem que estar impecável", diz Möeller. "Canhoneiro se pegava na rua, qualquer um, e hoje são técnicos especializados. Surgiram também as peruqueiras, por exemplo, que só cuidam das perucas no figurino."


Ao mesmo tempo, vem sendo exigida uma especialização cada vez maior dos atores. Embora ainda não existam escolas voltadas para a formação de profissionais dos musicais, diversos cursos foram criados, de olho num mercado promissor. "Ainda assim, as pessoas estão aprendendo muito na prática", avalia Möeller. E as exigências com o elenco são enormes. As várias aulas diárias começam cedo. Recomendam-se cuidados como falar pouco, não expor-se ao frio, não fumar ou beber, tudo para que a voz não seja prejudicada. Em compensação, o ganho é evidente: antes de o teatro musical se consolidar no Brasil, eram poucas as opções para esses profissionais ganharem salário, já que a maior parte das peças trabalha com o incerto sistema de porcentagem da bilheteria. "Só se levanta uma peça desse tipo se você pode pagar os atores, os músicos, a técnica. Mudou o modo de produção de teatro no Brasil", diz Botelho.


Metódicos, os dois seguem sempre a mesma rotina de produção. Sabem qual cena será ensaiada a cada dia - os ensaios, aliás, duram invariavelmente oito semanas. Embora afinados nesse trabalho, continuam a exercitar suas diferenças tão logo o espetáculo fica pronto. Botelho assiste à montagem apenas durante a primeira semana. Charles, "emocional e ansioso" em sua própria definição, segue como espectador ao menos duas vezes por semana, mais para avaliar a reação da plateia do que a qualidade da montagem.
Eles aprenderam a ser exigentes na meca dos musicais - a Broadway nova-iorquina, que frequentam há décadas. "Já naquele tempo não íamos como groupies ou fãs, e sim com a intenção de aprender. Prestávamos atenção nos truques, na métrica das músicas, nos toques de criatividade." Hoje, viajam duas vezes por ano aos Estados Unidos e Inglaterra com outro objetivo - garantir os direitos de musicais. Já estão comprados os clássicos londrinos Carousel e Sunset Boulevard.


Até por conta das diferenças de temperamento, as tarefas de cada um são muito bem divididas, exceto pela direção geral, que é atribuição conjunta. Além de coordenar a criação de arranjos e ensaios das canções com o elenco, Botelho é responsável pelo trabalho de passar para o português, de uma maneira natural, as letras dos espetáculos, uma de suas principais marcas. Möeller, por sua vez, cuida dos textos falados, cenografia, figurinos e do trabalho com os atores.


Unidos na diferença, Botelho e Möeller descobriram justamente aí a receita do sucesso. "O Claudio tirou meu ranço de achar que diversão era algo emburrecedor e alienante", diz Möeller. "O Charles me educou muito, artisticamente falando", devolve Botelho. O relacionamento entre os dois, assim, espelha de certa forma o moderno teatro brasileiro, que com frequência une arte e entretenimento, público e crítica - deixando para trás o ultrapassado preconceito segundo o qual espetáculos de grande popularidade não podiam ser bons. A exigente Barbara Heliodora que o diga.

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