8 de novembro de 2008

PUBLIFOLHA: Livro explica a vida e o teatro de Zé Celso Martinez Corrêa; leia capítulo

Em "Folha Explica José Celso Martinez Corrêa", editado pela Publifolha, o dramaturgo Aimar Labaki explica, de modo claro e informativo, a importância de José Celso, diretor de teatro que ajudou a produzir alguns dos mais importantes espetáculos brasileiros --tão inovadores, polêmicos e contestadores quanto indispensáveis para a construção de um país melhor. A introdução pode ser lida abaixo.
Reprodução

Folha explica a obra do diretor de teatro José Celso Martinez Corrêa
"Zé Celso", como é conhecido, formou em 1958 um grupo amador de teatro, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, que daria origem ao Teatro Oficina, marcado pelo compromisso de fazer uma obra de caráter inovador.
Trabalhou com vários colaboradores e alcançou êxito de público e crítica com montagens como "Quatro num quarto", de Valentin Kataiev, e "Andorra", de Max Frisch, dirigidas por ele e por Carlos Queiroz. Já em 1967, com a montagem da peça "O rei da vela", passou a desenvolver-se através do espetáculo-manifesto, tendo sido censurada pela ditadura, o que acabou o levando ao exílio. Nos anos 90, o Oficina voltou a atuar em São Paulo sob o seu comando, procurando manter a mesma linha teatral.
Entre outras peças de destaque que dirigiu destacam-se "Pequenos burgueses", de Maksim Gorki (1963) e "Roda Viva", de Chico Buarque (1968). Seu trabalho mais recente é "Os Sertões", de Euclides da Cunha, dividido em cinco partes.
Como o nome indica, a série "Folha Explica" ambiciona explicar os assuntos tratados e fazê-lo em um contexto brasileiro: cada livro oferece ao leitor condições não só para que fique bem informado, mas para que possa refletir sobre o tema, de uma perspectiva atual e consciente das circunstâncias do país.
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Nosso ritual diário de comunhão com o público ainda vai ser percebido como ouro, uma coisa rara e um luxo, pois o nosso teatro é apontado para o futuro, com ambição utópica de que a arte, como o futebol, seja o esporte das multidões.José Celso Martinez Corrêa, no site do Oficina
Teatro é ao vivo. Olho no olho, respirando o mesmo ar, sob a mesma temperatura, tendo vivido o mesmo dia na mesma cidade, ator e espectador estabelecem uma relação - real, simbólica, física, esotérica, intelectual, sexual - irrecuperável, irreversível e irreproduzível. Essa é sua força e sua maldição.
É a mais cruel das artes. Acontece ou não a cada apresentação. Em teatro não há segunda chance, bula nem perdão garantido pelas boas intenções. Vale o vivido. Ou não vale nada. Não dá para deixar na estante e tentar ler depois de uns anos. Não dá para ver de novo numa sessão da tarde e só então se emocionar. Não dá para esbarrar com a obra num museu e viver uma epifania.
Não há vídeo, depoimento nem texto que consiga reconstituir essa relação entre ator e espectador. E, quanto mais vivo for o teatro, quanto mais restrito ao que tiver de essencial, isto é, a essa relação, maior será o fosso entre a tentativa de resgate e a experiência real.
O teatro de José Celso Martinez Corrêa é dessa família. Mesmo os mais emocionados depoimentos de atores e espectadores, as precisas descrições de histo¬riadores e críticos ou os competentes registros em super-8, vídeo ou DVD resultam frustrantes para quem quer recuperar o prazer estético de assistir a um espetáculo desse que é um dos maiores encenadores do teatro brasileiro. (Num bom dia, é claro. Em teatro, como em tudo, a queda é proporcional ao salto.)
A partir da segunda metade do século 19, o teatro passou por uma revolução, cujas conseqüências mais visíveis foram: 1. o surgimento da figura do encenador, isto é, de um artista que concebe o espetáculo como um todo e que articula, a partir dessa concepção, o trabalho dos outros artistas - atores, cenógrafos, iluminadores e assim por diante; 2. a incorporação à dramaturgia de procedimentos e elementos de linguagem de outras formas de arte - notadamente da literatura e do cinema; 3. a abordagem de temas e personagens exteriores ao universo burguês, sendo o próprio fazer artístico alçado à condição de tema central do melhor dessa produção, explícita ou implicitamente; e 4. o fim da obrigatoriedade da presença de qualquer elemento da dramaturgia como era entendida até então (personagem, história, diálogo etc.).
No Brasil, a primeira companhia a se dedicar profissionalmente a um repertório e a uma estética modernos surgiu em 1948. Era o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), do italiano Franco Zampari, onde imperavam diretores europeus, cuja missão foi formar uma geração de artistas e de espectadores. Em 1958, dez anos, portanto, depois do início desse processo, o teatro brasileiro dava um salto com a estréia de Eles Não Usam Black Tie, de Gianfrancesco Guarnieri, dirigido por José Renato. Brasileiros no palco e na platéia tomavam as rédeas do processo.
Pero Vaz de Caminha já sabia que, por estas terras, plantando-se, tudo dá. Só não imaginava que com teatro fosse tão rápido. José Celso Martinez Corrêa, primeiro grande encenador da história do teatro brasileiro, é a prova disso. (Flávio Rangel optou por ser o primeiro grande diretor de teatro comercial, Antunes Filho maturou depois.) Em sete anos, de 1963 a 1970, à frente do mesmo Teatro Oficina, que dirige até hoje, aprendeu, digeriu e reinventou a tradição do teatro ocidental. Stanislavski, Brecht, Artaud, Grotowski - com Zé Celso, o teatro brasileiro ganhou maioridade para dialogar com a cena universal.
No momento em que Glauber Rocha dirigia seus filmes mais importantes, que Rogério Duprat, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Tom Zé, entre tantos outros, desenvolviam na música a explosão tropicalista, que Hélio Oiticica expandia a idéia de artes visuais para fora das fronteiras conhecidas, o teatro de Zé Celso estava no centro do que ele chamava de "revolução cultural", em diálogo permanente com todos.
Preso e torturado, optou pelo exílio. Continuou sua aventura em Portugal e na África, acompanhando revoluções e provocando outras.
Voltou antes da abertura e lutou para que a retomada de seu trabalho (assim como a da democracia) não fosse apenas formal. Desafiou o coro dos contentes bradando que a redemocratização seria falsa se não fosse acompanhada pela retomada do processo revolucionário. Levou mais de dez anos para voltar para a carreira de diretor profissional.
O que veio a seguir foi inédito. Uma segunda floração, uma segunda leva de espetáculos memoráveis, dialogando com a cultura e a política brasileira de uma maneira que nenhum outro grupo ou artista fazia naqueles anos 90 (com exceção do Teatro da Vertigem, de Antônio Araújo).
Quando esse ciclo completou dez anos, Zé Celso deu novamente uma guinada e partiu para uma nova-velha batalha: metaforizou, na sua luta contra o plano de construção de um shopping que desrespeitava a lei de tombamento do teatro, a discussão sobre as conseqüências do capitalismo financeiro sobre a vida dos cidadãos das megalópoles do Terceiro Mundo. Para tanto, retomou um plano dos anos 60: montar Os Sertões, de Euclides da Cunha, provocando a discussão sobre a cidade e o país que queremos.
José Celso Martinez Corrêa na carteira de identidade, que registra seu nascimento em 30 de março de 1937, em Araraquara, interior de São Paulo; Zé, para os mais próximos; Zé Celso, para os que o admiram apenas no palco; "gênio", para os jovens adolescentes que se sucedem no palco e na platéia de seus espetáculos há mais de 40 anos; "decano do ócio", para os maledicentes - esse é um caso em que artista e homem, obra e vida, são indiscerníveis.
Xamã é a função que Zé Celso exerce na comunidade teatral brasileira. Aglutina forças vitais, evoca os deuses e espíritos da devoção dos cidadãos, provoca a libido, incita à desobediência.
Sempre irreverente, polêmico, sexuado e revolucionário. Sempre atacado, vilipendiado, ridicularizado.
Zé Celso é o bode do teatro brasileiro. Enquanto ele bale, a caravana é obrigada a passar. O mundo é obrigado a se mover.

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